segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Rabiscos de superação - Como a arte se tornou um instrumento de motivação

Descrição para cegos: cartum da coletânea "Visão e Revisão Conceito e Pré-Conceito", que mostra uma mulher com obesidade, um idoso, um homem com uma bolsa com rodinhas e uma mulher com carrinho de bebê diante de uma escada. Logo abaixo, a frase: "pra quem acha que 'acessibilidade é coisa só de cadeirante'".
O cartunista Ricardo Ferraz nasceu em Cachoeiro do Itapemirim – ES. Aos cinco anos de idade, contraiu poliomielite e encontrou no desenho seu refúgio. Entre seus trabalhos, a série de cartuns que retrata satiricamente o cotidiano, as dificuldades e o preconceito enfrentado pelas pessoas com deficiência ganha destaque e é reconhecida mundialmente. A série está em uma exposição itinerante pelo mundo desde 1981 e também está reunida na coletânea “Visão e Revisão Conceito e Pré-Conceito”, que já está na 3ª edição. Atualmente, sua arte é divulgada pela ONU e veiculada em livros didáticos do país, além de jornais e revistas da América do Sul, América do Norte, Europa e África do Sul. Em entrevista para o blog Cidadania e Direitos dos Deficientes, Ricardo conta como a arte foi crucial para a sua história de superação e de onde vem a inspiração para abordar essa temática. 



Descrição para cegos: Ricardo Ferraz sentado atrás de uma mesa, segurando
um de seus desenhos. Sobre a mesa, mais dois desenhos, uma folha em branco e
uma caneta. Junto à ele, em outra mesa, um notebook e caixinhas de som.
Andréa Meireles- De que forma o desenho te ajudou a conquistar sua integração social?
Ricardo Ferraz - Tenho orgulho da minha história de superação. Falo da minha infância onde descobri a arte através da dor, quando contraí poliomielite aos cinco anos de idade, morando numa fazenda no extremo sul da Bahia, sem nenhum recurso. De tanto levar agulhadas das injeções que meu pai aplicava sem nenhuma experiência, meus braços e “bum-bum”, viraram uma ferida só. Mas até que um dia encontrei minha “salvação” num pedaço de papel de embrulho e um carvão de lenha, rabiscava de forma lúdica para aliviar a dor. Minha infelicidade era quando não tinha mais espaço para o rabisco e, para conseguir mais papel, eu chorava e dizia que queria comer pão. Desesperada pelos meus berros, minha mãe saia a galope em um cavalo para comprar no único “boteco” da fazenda e, ao retornar com os pães, eu esperava ela sair do quarto e jogava os pães fora para ficar apenas com o papel. Assim começou o meu amor pela arte. 
Em palestras motivacionais, falo para os jovens e crianças: “acredite no seu sonho, mas precisa ser determinado, persistente, ser humilde, saber ouvir...” Falo basicamente dos valores e mostro a eles: é possível realizar sonhos. Eu quero ser um espelho positivo para esses jovens que não têm perspectiva, reflexo dos problemas sociais e do ambiente hostil das famílias desestruturadas. Deixo meu exemplo de resiliência, cito: se Ricardo, que sofreu tanto, transformou o limão em limonada, por que eles também não conseguem? Trabalho como arte educador com jovens de comunidades carentes e idosos de dois asilos da cidade, através de um projeto de minha autoria, o “Desenhando o Amanhã”. O poder da arte como instrumento de superação e socialização. Tema que posso falar com experiência própria, sou uma pessoa conhecida e reconhecida, graças à arte.

Andréa - Entre seus trabalhos, pode-se destacar os cartuns satíricos acerca das dificuldades do cotidiano das pessoas com deficiência. Em que momento você decidiu mesclar sua arte com essa temática? Alguma coisa te motivou a isso?
Ricardo - Encontrei uma grande lacuna nas artes gráficas. Quando via um cartum sobre deficientes, era recheado de preconceitos e as conhecidas piadas de salão, como aquelas: “você conhece a piada do ceguinho? Do aleijadinho? Do mudinho...” e muitos rs, rs, rs. Como já dizia o saudoso jornalista Paulo Francis, “um cartum vale milhares de palavras para um povo a quem se nega as primeiras letras”. Acreditando na força da imagem e do humor, comecei abordar as barreiras físicas e humanas enfrentadas pelas pessoas com deficiência no seu dia a dia e seus conflitos com a sociedade, tema que posso falar de “cadeira”. 
Por ser um deficiente físico e militante do Movimento, uso o poder da arte como instrumento de transformação social, registrando minha indignação com o preconceito. Queria denunciar essas barreiras, mas sem “dramalhão mexicano” e encontrei no humor uma forma de falar sério. Quis mostrar que a deficiência não estava nas limitações físicas e sim na sociedade, na cultura, nas suas práticas errôneas, no preconceito, na ignorância. Fiz “piada de brasileiro” contada por português, mas com bastante critério e ética para não ficar vulgar. Fui um “Quixote”, o primeiro cartunista a levar esse tema para os jornais, exposição itinerante que, desde 1981, percorre o Brasil e exterior. A exposição culminou numa coletânea “Visão e Revisão Conceito e Pré-Conceito”, que está na sua 3ª edição. Levei a temática para as antigas vinhetas animadas “Plim-Plim” da Rede Globo, através de concursos em nível nacional entre 2001 a 2007, dos sete concursos que participei, venci quatro. Atualmente os cartuns ilustram livros didáticos das principais editoras do país e é divulgado pela ONU, através de suas agências pelo mundo. Fico orgulhoso por ter contribuído nessa quebra de paradigmas e no sonho de uma sociedade digna e inclusiva.

Descrição para cegos:
cartum utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Andréa - Seus cartuns relatam situações comuns no dia a dia das pessoas com deficiência e, por isto, provocam um sentimento de identificação. Sua inspiração para abordar essas situações parece ser inesgotável. De onde ela vem?
Ricardo - Não tive dificuldade de criar os cartuns, apenas retratava com fidelidade e até o humor não era minha criação, já estava “embutido” na desinformação da comunidade por não saber lidar com o assunto nas abordagens, transformavam em situações constrangedoras e humilhantes e, devido a esses fatores, chega ser uma fonte inesgotável para a criação dos cartuns. Cito algumas passagens reais: uma pessoa com deficiência, ao aproximar de outra, sem deficiência, esta, precipitadamente, já tirava alguns centavos do bolso e jogava no colo do cadeirante como esmola, mas, na realidade, ele queria apenas uma informação. Em outra passagem, uma moça paraplégica dirigia seu carro e, no cruzamento do semáforo, entre olhares, surgiu uma paquera, e o conquistador chegou até a porta do carro, cheio de romantismo e elogios. Mas, quando percebeu que a sua “musa” usava muletas, saiu pedindo desculpas: “não vi a muleta da senhora, mil perdões!” Foi uma iniciativa plausível em relação à receptividade e ao carinho dos leitores, pois todos entenderam o objetivo e a sua contribuição para a autocrítica e as mudanças de conceito que aos poucos esse segmento estigmatizado vem ganhando visibilidade principalmente através dos esportes paralímpicos e seus recordes de medalhas de ouro, superando os ditos “normais”.

Andréa - Que efeitos você espera provocar nessas pessoas, através da sua arte?
Ricardo - A abordagem artística da temática é uma forma alternativa para uma profunda reflexão, sensibilizar a sociedade sobre a problemática das pessoas com deficiência no Brasil e sua luta pela tão sonhada inclusão social.
O número crescente de pessoas com algum tipo deficiência é preocupante, reflexo dos acidentes no trânsito, trabalho, violência urbana, doenças congênitas e sócias que segundo a estatística do IBGE, em 2010 ultrapassava o número de 45 milhões. A maioria dessas pessoas ainda não alcançou a sua cidadania. Vive á margem da sociedade, segregados dos seus direitos constitucionais e entre tantos, o sagrado direito de ir e vir. A arte como bandeira pretende provocar a sociedade para uma consciência humanizadora, um novo olhar nas atitudes e nas ações de cidadania na construção de uma sociedade fraterna e igualitária. Utopia? Só depende de você. 
(Andréa Meireles)

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